*Por Agência Conversion
O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu em seu livro Futebol ao Sol e à Sombra (LP&M, 1995) que o futebol é algo que se assemelha a Deus, porque “tem a devoção dos crentes e a desconfiança dos intelectuais”. Em Buenos Aires, a afirmação é vista a olho nu: A capital argentina é, por exemplo, a metrópole com a maior quantidade de estádios para mais de 10 mil pessoas do globo: 36 – em um território onde vivem 13 milhões de pessoas.
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O maior deles é o Monumental, no bairro de Nuñez, de propriedade do River Plate. A arena – onde a seleção argentina manda a maioria dos seus jogos quando atua em casa – pode receber até 61.600 torcedores. Em seguida, está o Presidente Perón (“El Cilindro”), do Racing de Avellaneda (51.300 espectadores).
Há ainda outros seis estádios com capacidades entre 40 mil e 50 mil pessoas, outra meia dezena que recebe entre 30 mil e 40 mil, oito entre 20 mil e 30 mil e 14 entre 10 mil e 20 mil. O menor é o campo do Argentino de Merlo, da terceira divisão local, no bairro de Merlo, ou o do San Miguel, da quarta divisão, que joga no Malvinas Argentinas, em Los Polvorines, para, no máximo, 11 mil pessoas.
Em outras palavras: Não há cidade no mundo onde se veja e se jogue tanto futebol como em Buenos Aires. Muitos portenhos – os que vivem na capital – e bonaerenses, da província, jogam futebol ao menos uma vez por semana em ligas amadoras ou em grupos de amigos.
“É raro alguém que não tenha o costume de jogar futebol em Buenos Aires”, escreveu o escritor Alejandro Dolina ao jornal argentino La Nación. Em seu livro Crónicas del Ángel Gris (sem tradução para o português), há um texto famoso sobre futebol – “Apuntes de fútbol en Flores”, bairro portenho de sua inspiração. Dolina segue jogando futebol todas as terças-feiras: Ele tem 71 anos e geralmente enfrenta zagueiros entre os 20 e os 30.
Pelos 36 estádios, Buenos Aires fica à frente de São Paulo, que possui 15, Londres, com 12, Rio de Janeiro, com nove, e Madri, na Espanha, com cinco. “Buenos Aires é uma das três cidades com mais estádios de futebol de qualquer tamanho, junto com Londres e Montevidéu, e uma das explicações possíveis é que aqui se manteve a tradição britânica de cada clube ter seu próprio estádio”, comentou o professor Julio Frydenberg, da Universidad de Buenos Aires (UBA), que escreveu o livro Historia Social del Fútbol, ao Clarín.
“Em outros países, todas as equipes de uma cidade jogam no estádio municipal. Aqui, teve muita luta dos clubes para conseguir seu terreno e construir as tribunas, com a ajuda dos vizinhos e de alguns mecenas”, completou.
Recentemente, a administração municipal decidiu explorar a herança futebolística da metrópole: Há dois anos circulam várias vezes por semana ônibus turísticos que levam os visitantes por um circuito de cinco estádios portenhos. A ideia é que o tour perpasse não apenas as histórias dos clubes e seus estádios, mas também dos bairros onde eles estão localizados: La Boca, Parque Patrícios, Boedo, La Paternal e Nuñez, regiões onde estão Boca Juniors, Huracán, San Lorenzo, Argentinos Juniors e River Plate, respectivamente.
“Cada um possui sua identidade, que se expressa bem no que os torcedores querem ver dos seus times no campo”, conta o jornalista peruano Bruno Ortiz, que estuda a relação entre futebol e os moradores de Buenos Aires.
O ônibus ainda passa por Retiro, Monserrat, San Telmo, Barracas, Flores, Caballito, Villa del Parque, Villa Crespo, Palermo e Belgrano. O passeio é gratuito, mas se os visitantes desejarem entrar nos estádios, precisam pagar ingressos com os preços cobrados pelos clubes. É possível pagar antecipadamente para entrar em todos os estádios. No inverno, é uma boa pedida para fugir do frio intenso que costuma fazer na capital, assim como, no verão, os museus equipados com ar-condicionado refrescam do sol forte.
Los barrios de Buenos Aires
Diferente das grandes cidades brasileiras, na Argentina, o bairro (barrio) é uma dimensão espacial que cria laços comunitários e práticas sociais muito fortes. O morador de um barrio de Buenos Aires pode se identificar mais com ele do que com a própria cidade, fazendo com que o clube seja a expressão competitiva dessa diferenciação.
Boedo, por exemplo, é o bairro do San Lorenzo, ainda que o seu estádio, o Nuevo Gasómetro, não esteja erguido lá. O Gasómetro, seu primeiro estádio – este sim localizado em Boedo -, foi expropriado pela ditadura argentina para saldar as dívidas que o clube tinha com o Estado em 1979. No lugar, foi construído um supermercado. O San Lorenzo, sem dinheiro, reconstruiu sua casa a 3 quilômetros dali, no bairro de Bajo Flores.
A sede do clube, no entanto, permanece em Boedo, literalmente ao lado do que era o velho estádio e hoje é o supermercado. Além dela, as ruas do bairro são repletas de bandeiras, pinturas com as cores do time, pequenos campos, bares temáticos e propagandas que lembram qualquer um que passa por ali que aquela região pertence aos torcedores do San Lorenzo.
Em 2015, a direção do Carrefour – o mercado hoje instalado no que era o terreno do estádio – e o San Lorenzo anunciaram um acordo pela compra do local, em um negócio de cerca de R$ 600 milhões.
Boedo, vale dizer, é um dos bairros típicos de Buenos Aires, onde até meados do século 20 a boêmia argentina se reunia para compor letras de tango, escrever livros e promover debates políticos. Em alguns dos cafés que resistem ao tempo e funcionam até hoje, podem ser encontradas histórias sobre, por exemplo, a composição de Sur, um dos tangos mais famosos da Argentina, escrito por Homero Manzi no antigo San Juna – hoje, Café Homero Manzi.
Boedo se difere muito de Nuñez, o bairro do River Plate, já nos limites da cidade, e que abriga o Monumental, estádio que serve como casa da seleção argentina em Buenos Aires. A região foi tradicionalmente conhecida por suas ruas tranquilas, com grandes casas e praças arborizadas, característica que se valorizou nos últimos anos, quando empreiteiras escolheram Nuñez para construir prédios residenciais.
Considerando apenas Buenos Aires, onde vivem quase 3 milhões de pessoas, 412 campos de futebol com capacidades para 5 a 11 jogadores estavam habilitados em 2015, de acordo com a administração municipal. É como escreveu o jornalista alemão Christian Thiele, autor do livro Instrucciones para Argentina, que foi publicado em alemão em seu país. Um dos textos da obra fala justamente sobre a “obrigatoriedade” de jogar futebol às segundas-feiras.
“O homem argentino não necessita de muitas coisas para viver, mas apenas de algumas: Uma vaca morta nos dentes e o futebol da noite”, assinalou ao diário espanhol El País.